domingo, 7 de março de 2010

A mulher e o resgate do potencial criativo

Amanhã, 08 de Março, é dia "Internacional da Mulher"... Todos os anos, proferi reverências as mulheres revolucionárias! Mulheres que romperam com precoceitos, com a subserviência, com o machismo, com a moral. Mulheres que mudaram a história. Mas hoje, estranhamente, penso em mulheres mais revolucionárias que aquelas dos anos anteriores. Reverencio mulheres de carne e osso. Penso na minha mãe, nas minhas avós, nas minhas irmãs, nas minhas tias, nas minhas amigas. Somos mulheres, sabemos bem o quanto batalhamos no dia a dia... Por isso, as mulheres reais, mulheres que estão próximas, que me ajudam cotidianamente, merecem meu respeito, admiração e homenagem.
Além disso, lembro também das mulheres trabalhadoras, que são oprimidas todos os dias. Mulheres que possuem jornada de trabalho dupla. Mulheres que possuem jonarda de trabalho integral em suas casas. Mulheres que deixam seus filhos em casa para cuidar dos filhos de suas "patroas". Mulheres que deixam seus filhos para outras pessoas cuidarem e saem para trabalhar. Enfim, todas as mulheres trabalhadoras! Essas também merecem minha reverência.
Agora há algo comum entre todas, independente do status quo... Todas as mulheres se deparam com circunstâncias que afetam seu potencial criativo, que matam a mulher selvagem. Nós mulheres vivemos sob a égide da opressão que foi historicamente construída. O pensamento opressor é o nosso grande vassalo. A confusão contemporânea, as cobranças. Opressão que enlouquece. Opressão que mata todo potencial criativo. Opressão que mata a mulher selvagem. Opressão que traz o tudo e o nada. É certo que este papo de mulher selvagem vai na contra-mão dos debates feministas. Mas eu confesso: quero despertar a mulher selvagem que existe em mim. Quero resgatar meu potencial criativo. Quero manter o animus vivo, iluminado, em movimento! Por isso, presenteio as mulheres e homens que querem auxiliar as mulheres na tarefa de manter o potencial criativo, com um trecho do livro "Mulheres que correm com os lobos"... Quem tiver paciência, leia o excerto abaixo!
Que todos os dias sejam nossos dias!!!!!



ESTÉS, Clarisse Pinkola Estés. Mulheres que correm com os lobos: mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

p. 377 - 379

La Llorona

Um rico hidalgo, fidalgo, corteja uma moça pobre, mas muito bonita, e conquista seu afeto. Ela lhe dá dois filhos, mas ele não se dispõe a casar com ela. Um dia, ele comunica que vai voltar para a Espanha, onde se casará com uma moça rica escolhida por sua família, e que vai levar seus filhos para lá. A jovem mãe fica fora de si e age no estilo das célebres loucas enfurecidas de todos os tempos. Ela arranha o rosto do homem e arranha seu próprio rosto. Rasga as vestes dele e rasga as suas próprias vestes. Ela apanha os dois meninos pequenos, corre para o rio com eles e lá os joga na correnteza. As crianças morrem afogadas, e La Llorona cai às margens do rio, cheia de dor, e morre.
0 hidalgo volta para a Espanha e se casa com a mulher rica. A alma de La Llorona sobe aos céus. Lá o porteiro-mor diz que ela pode entrar nos céus, já que sofreu, mas que não pode lá entrar sem antes resgatar do rio as almas das duas crianças.
E é por isso que se diz hoje em dia que La Llorona vasculha as margens dos rios com seus longos cabelos, que mergulha seus dedos compridos na água para arrastá-los no fundo à procura dos filhos. É também por isso que as crianças vivas não devem se aproximar dos rios depois de anoitecer, porque La Llorona pode confundi-las com seus próprios filhos e levá-las embora para sempre.

Passemos, agora, a uma versão moderna de La Llorona. À medida que a cultura sofre influências diversas, nosso modo de pensar, nossas atitudes e nossos temas mudam. Muda, também, a história de La Llorona. Enquanto eu estava no Colorado no ano passado, colhendo histórias de fantasmas, Danny Salazar, um menino de dez anos de idade, sem dentes incisivos e com pés absurdamente grandes para um corpo mirrado (que um dia será muito alto), me passou esta história. Ele me garantiu que La Llorona não matou os filhos pelos motivos mencionados na versão antiga.
"Não, não", insistiu Danny. La Llorona ficou com um rico hidalgo, dono de fábricas junto ao rio. Algo, no entanto, deu errado. Durante a gravidez, La Llorona bebeu água do rio. Seus filhinhos, dois meninos gêmeos, nasceram cegos e com os dedos unidos por membranas, pois o hidalgo havia envenenado o rio com os dejetos das suas fábricas.
0 hidalgo disse a La Llorona que não a queria, nem a seus filhos. Ele se casou com uma mulher rica que queria os objetos produzidos pela fábrica. La Llorona jogou os filhos no rio porque eles iriam levar uma vida extremamente difícil. Depois, ela caiu morta de tanta dor. Ela foi para o céu, mas São Pedro lhe disse que ela não poderia entrar enquanto não encontrasse as almas dos filhos. Agora La Llorona procura o tempo todo por seus filhos no rio poluído, mas ela mal chega a ver alguma coisa de tão escura e suja que é a água. Ora seus longos dedos de fantasma varrem o fundo do rio. Ora ela vagueia pelas margens chamando pelos filhos o tempo todo.


p. 394 - 398

Reassumindo o rio

A natureza da vida-morte-vida faz com que o destino, o relacionamento, o amor, a criatividade e tudo o mais se movimentem em coreografias amplas e selvagens, uma atrás da outra na seguinte ordem: criação, crescimento, poder, dissolução, morte, incubação, criação, e assim por diante. A sabotagem ou a ausência de idéias, pensamentos, sentimentos é o resultado de uma corrente tumultuada. Eis como reassumir o rio.
Aceite o alimento para começar a limpeza do rio. Elementos contaminadores que perturbam o rio ficam óbvios quando a mulher rejeita elogios sinceros acerca da sua vida criativa. Pode ser que haja apenas um pouquinho de poluição, como no despreocupado "Ah, como você está sendo simpático com esse elogio", ou pode ser que os problemas com o rio sejam graves: "Ora, essa velharia" ou "Você deve estar ficando louco." Além da atitude defensiva: "É claro que eu sou maravilhosa. Como você poderia deixar de perceber?" Todas essas expressões são sinais de um animus enfermo. Podem chegar coisas boas à mulher, mas elas são imediatamente envenenadas.
Para reverter o fenômeno, a mulher treina aceitar elogios (mesmo que a princípio ela dê a impressão de estar se jogando ao cumprimento para, dessa vez, ficar com ele). Ela o saboreia e repele o animus maligno que quer responder "Isso é o que você pensa. Você na verdade não sabe todos os erros que ela fez. Você não sabe como ela é chata...", e assim por diante.
Os complexos negativos sentem uma atração especial pelas idéias mais suculentas, pelas idéias mais maravilhosas e revolucionárias e pelas formas de criatividade mais extravagantes. Portanto, não há outra alternativa: precisamos invocar um animus que aja com maior limpeza, e o mais velho deverá ser aposentado, ou seja, transferido para os arquivos da psique, onde deixamos arquivados impulsos e catalisadores vazios e dobrados. Ali eles se transformam em artefatos, em vez de agentes ou de emoção.
Seja sensível. É assim que se limpa o rio. Os lobos levam vidas imensamente criativas. Eles fazem dezenas de opções todos os dias, decidem de um modo ou de outro, avaliam distâncias, concentram-se na presa, calculam as suas chances, aproveitam oportunidades, reagem vigorosamente para realizar suas metas. Suas capacidades de encontrar o que está oculto, de aglutinar intenções, de focalizar a atenção no resultado desejado e de agir em seu próprio benefício para atingi-lo são as exatas características necessárias para a realização criativa nos seres humanos.
Para criar é preciso que sejamos capazes de nos sensibilizar. A criatividade é a capacidade de ser sensível a tudo que nos cerca, a escolher em meio às centenas de possibilidades de pensamento, sentimento, ação e reação, e a reunir tudo isso numa mensagem, expressão ou reação inigualável que transite ímpeto, paixão e determinação. Nesse sentido, a perda do nosso ambiente criativo significa que nos encontramos listadas a uma única opção, que fomos despojadas dos nossos sentimentos e pensamentos, ou que os reprimimos ou censuramos, sem agir, sem falar, sem fazer, sem ser.
Seja selvagem. É assim que se limpa o rio. O rio não começa já poluído; isso é nossa responsabilidade. O rio não fica seco; nós o represamos. Se quisermos lhe permitir sua liberdade, precisamos deixar que nossa vida ideativa se solte, corra livre, permitindo a vinda de qualquer coisa, a princípio sem censurar nada. Essa é a vida criativa. Ela é composta do paradoxo divino. Para criar, precisamos estar dispostas a ser rematadas idiotas, a nos sentar num trono em cima de um imbecil, cuspindo rubis pela nossa boca. Só assim o rio correrá, e nós poderemos nos postar na correnteza. Podemos estender nossas saias e blusas para apanhar o que pudermos carregar.
Comece. É assim que se limpa o rio poluído. Se você tiver medo, tiver receio de fracassar, digo-lhe que comece já, fracasse se for preciso, recupere-se, recomece. Se fracassar de novo, fracassou. E daí? Comece novamente. Não é o fracasso que nos detém, mas é a relutância em recomeçar que nos faz estagnar. Se você estiver apavorada, qual é o problema? Se você estiver com medo de que algo vá dar um salto para mordê-la então pelo amor de Deus, resolva isso imediatamente. Deixei que seu medo surja e a morda para que você possa superá-lo e seguir adiante. Você irá superá-lo. O medo acaba passando. Nesse caso, é melhor que você o encare de frente, que o sinta e que o supere, do que continuar a usá-lo como pretexto parai evitar limpar o rio.
Proteja seu tempo. É assim que se eliminam os poluentes. Conheço uma pintora muito impetuosa nas Montanhas Rochosas que pendura o seguinte cartaz na porta de casa quando ela está disposta a pintar ou a pensar. "Hoje estou trabalhando e não vou receber visitas. Sei que você pensa que isso não se aplica a você porque você é o gerente da minha conta no banco, meu agente ou meu melhor amigo. Mas se aplica sim.’’
Outra escultora que conheço tem o seguinte cartaz pendurado no portão. "Não perturbe a não ser que eu tenha ganho a loteria ou que alguém tenha visto Jesus Cristo na rodovia de Old Taos." Como se pode ver, o animus positivo tem excelentes fronteiras.
Fique com ela. Como eliminar ainda mais a poluição? Insistindo para que nada impeça de exercitar o animus; continuando nossas iniciativas que tecem alma e criam asas, nossa arte, nossos consertos e remendos psíquicos, quer nos sintamos fortes, quer não, quer estejamos prontas, quer não. Se necessário, nos amarrando ao mastro, à cadeira, à mesa de trabalho, à árvore, ao cacto — onde quer que estejamos criando.
Esses complexos negativos são eliminados ou transformados — seus sonhos irão guiá-la no trecho final do caminho — quando você finca o pé, de uma vez por todas, e afirma, "Amo a minha vida criativa mais do que amo cooperar com a minha própria opressão." Se maltratássemos nossos filhos, o serviço de assistência social viria bater às nossas portas. Se maltratássemos nossos animais de estimação, a sociedade protetora dos animais viria nos afastar deles. No entanto, não existe nenhuma Patrulha da Criatividade ou Polícia da Alma para intervir se insistirmos em esfaimar nossa alma. Somos só nós mesmas. Nós somos as únicas a cuidar do Self da alma e do animus heróico. É uma enorme crueldade regá-los apenas uma vez por semana, uma vez por mês ou mesmo uma vez por ano. Cada um deles tem seu ritmo circadiano. Eles precisam de nós e da água da nossa atividade todos os dias.
Proteja sua vida criativa. Se você quiser evitar a hambre del alma, a alma faminta, chame o problema pelo seu verdadeiro nome e trate de consertá-lo. Pratique sua atividade todos os dias. E então, não permita que nenhum homem, mulher, parceiro, amigo, religião, emprego ou voz resmungona venha forçá-la a passar fome. Se necessário, arreganhe os dentes.
Forje seu verdadeiro trabalho. Construa aquele abrigo de carinho e conhecimento. Transfira sua energia de um lado para o outro. Insista em atingir um equilíbrio entre a responsabilidade prosaica e o êxtase pessoal. Proteja a alma. Insista numa vida criativa de qualidade. Não permita que seus próprios complexos, sua cultura, os dejetos intelectuais ou que qualquer papo-furado político, pedagógico, aristocrático ou pretensioso lhe roubem essa vida.
Ofereça alimentos para a vida criativa. Embora muitas coisas sejam boas e nutritivas para a alma, a maioria recai num dos quatro grupos básicos de alimentos da Mulher Selvagem: o tempo, a sensação de integração, a paixão e a soberania. Faça estoque deles. Eles mantêm o rio limpo.
Quando o rio estiver novamente limpo, ele estará livre para correr. A produção criativa da mulher aumenta e daí em diante continua em ciclos naturais de aumento e redução. Nada será enlameado ou destruído por muito tempo. Quaisquer agentes de contaminação que ocorram naturalmente serão neutralizados com eficácia. O rio volta a ser nosso sistema de realimentação, um sistema no qual penetramos sem medo, do qual podemos beber sem preocupação, junto ao qual podemos tranqüilizar a alma atormentada de La Llorona, curando seus filhos e os devolvendo para ela. Podemos então desmontar o mecanismo poluente da fábrica, instalar um novo animus. Podemos viver nossa vida como desejarmos e como nos for conveniente, ali ao lado do rio, com nossos filhinhos no colo, mostrando-lhes seu reflexo na água limpíssima.

neste link é possível baixar o livro gratuitamente:
http://www.easy-share.com/1904537073/Mulheres%20que%20correm%20com%20os%20lobos%20-%20Clarissa%20Pinkola%20Estes.rtf

Um comentário:

Renata disse...

Muito bonito! Gostei muito!

Falas da mãe agora: concordo em gênero, número e grau. Muito obrigada filha! Parabéns Selvagem Mulher!